Casa do Ribatejo 65

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terça-feira, 10 de julho de 2012


                                   A MICROSCOPIA ELECTRÓNICA
  1. 1.     Introdução

Quase toda a minha vida profissional foi dedicada ao estudo das doenças causadas por vírus em plantas, os chamados Fitovírus. Os constituintes de um vírus (partículas virais ou viriões), dada a sua pequeníssima dimensão, só podem ser observados utilizando um microscópio electrónico. Este equipamento foi imprescindível para os trabalhos de investigação que realizei e que se centraram não só na observação directa dos vírus e análise dos seus aspectos morfológicos,  mas também no estudo ultraestrutural das anomalias por eles causadas nas células e tecidos das plantas infectadas. Dado o interesse ou curiosidade que a microscopia electrónica poderá despertar nos colegas menos familiarizados com esta técnica, achei que poderia transmitir alguns dos conhecimentos que adquiri ao longo da minha experiência.
A minha ligação à microscopia electrónica começou em 1967, na Estação Agronómica Nacional (EAN), em Oeiras, quando iniciei o estágio de fim de curso cujo tema foi o estudo das viroses do morangueiro. Como nessa altura a EAN não dispunha ainda de microscópio electrónico, tive de socorrer-me do microscópio existente no Instituto Gulbenkian de Ciência, graças à amabilidade do Prof. David Ferreira, que nessa altura tinha em curso trabalhos de colaboração com a Dr.ª Maria de Lourdes Borges, minha orientadora de estágio. O microscópio electrónico era um Siemens Elmiskop 1 (Fig.1).


Figura 1- O “velho” microscópio Siemens Elmiskop 1

Após concluir o curso de Agronomia, fui trabalhar para o Instituto de Investigação Agronómica de Angola, no Huambo. Felizmente, havia em Luanda, na Faculdade de Medicina, um microscópio electrónico que tive a possibilidade de utilizar sempre que necessário. Esse microscópio era idêntico ao do Instituto Gulbenkian de Ciência e o único inconveniente que tinha era a sua localização, a mais de 600 quilómetros do Huambo o me que obrigava a programar criteriosamente as deslocações a Luanda.
A partir de 1975, quando regressei à EAN, já esta dispunha de microscópio electrónico, um Philips EM 300 (Fig.2), que me permitiu, durante quase 30 anos, realizar a maior parte dos trabalhos de investigação em Virologia Vegetal. No trabalho de doutoramento, efectuado na Escócia (Dundee) de 1979 a 1982, utilizei também, curiosamente, um microscópio Philips (EM 301), praticamente igual ao da EAN.


Figura 2. O microscópio electrónico Philips EM 300

Da longa relação que tive com a microscopia electrónica posso dizer que foi para mim aliciante ou até mesmo “viciante” descobrir, através dela, o mundo dos vírus das plantas, muito especialmente os seus aspectos morfológicos que são muito variados e a sua presença nas células e tecidos. Muitas das observações que realizava na EAN prolongavam-se até tarde, frequentemente pela noite dentro e quando observava algo de muito interessante, o entusiasmo era tal que, muitas vezes,  só depois das 22 horas desligava o microscópio. E diga-se que era com grande pena que o fazia. Também em inúmeras aulas que dei a turmas do ensino secundário e universitário verifiquei o grande entusismo manifestado pelos alunos em relação ao microscópio electrónico e às suas potencialidades. É sem dúvida uma ferramenta fundamental para o estudo dos vírus que afectam não só as plantas mas também os animais.

  1. 2.      A  microscopia óptica e a microscopia electrónica.

Provavelmente todos os colegas utilizaram a microscopia óptica mas muitos não tiveram oportunidade de utilizar a microscopia electrónica nos seus estudos e, por isso,  desconhecerão os princípios em que esta técnica se baseia. Não pretendo de forma alguma descrever detalhadamente todos os aspectos técnicos que tornariam o texto exageradamente longo e árido, mas apenas explicar resumidamente os princípios em que a microscopia electrónica se baseia e fazer algumas comparações com a microscopia óptica.
Como é do conhecimento geral, a principal característica de um microscópio é o seu poder resolvente que é medido como a menor distância entre 2 pontos que são vistos ao microscópio como distintos. Assim, se o poder resolvente de um microscópio for de 200 nanómetros, isto quer dizer que dois pontos que distam entre si de 200 nanómetros ainda são vistos ao microscópio como pontos distintos. Se estiverem a uma distância inferior, as imagens observadas sobrepõem-se e não permitem concluir se os pontos estão ou não separados.
Uma grande ampliação das imagens obtidas num microscópio de nada serve se o poder resolvente não for bom. Em vez de imagens com muito pormenor e com grande informação, teremos “borrões” sem qualquer interesse.
O microscópio óptico começou a ser utilizado no começo do século XVII. Muitos atribuem a invenção do microscópio a Galileu mas foi Anton Van Leeuwenhoek (Fig.3), naturalista holandês(1632-1723) quem o aperfeiçoou e utilizou na observação de seres vivos. Dotados de apenas uma lente de vidro estes primitivos microscópios permitiam aumentos de até 300 vezes com razoável nitidez.

Figura 3.  Anton Van Leeuwenhoek

Construído  em 1674, o primeiro microscópio (Fig. 4 ), permitiu observar os glóbulos vermelhos do sangue, vários microrganismos e bactérias de apenas 1 a 2 micra.

                                                                       Figura 4. O Microscópio de Leeuwenhoek 

O microscópio simples de Leeuwenhoek, foi aperfeiçoado por Robert Hooke (1635-1703), que lhe acrescentou mais uma lente e, deste modo, conseguiu ampliações maiores (Fig.5). As primeiras observações de um pedaço de cortiça feitas por este cientista inglês em 1655 e os estudos do holandês Leeuwenhoek levaram à descoberta das células. Porém, somente em 1839, com o botânico Matthias Jacob Schleiden (1804-1841) e com o zoólogo e fisiologista Theodor Schwann (1810-1882), ambos da Alemanha, foi reconhecida a célula como a unidade fundamental da vida.

                                  Figura 5.   O Microscópio de Hooke e imagens das células da cortiça


Quando se estudou a forma de melhorar o poder resolvente do microscópio óptico (fotónico), verificou-se que essa característica dependia essencialmente das lentes (material constituinte e curvatura) e do comprimento de onda da luz utilizada. Em relação às lentes chegou-se a um limite a partir do qual já não era possível uma melhoria. O comprimento de onda da luz utilizada estava também limitado entre os 400nm (ultravioleta) e os 700nm (infravermelho), uma vez que essa luz é a luz visível. Como o poder resolvente de um microscópio é cerca de metade do comprimento de onda da radiação utilizada, na melhor das hipóteses, será de 200 nanómetros para a luz visível.  Para se utilizar uma “luz” de comprimento de onda mais favorável, ou seja, muito mais baixo, teríamos que sair do espectro visível e, portanto, qualquer imagem obtida seria invisível.
Assim, a construção de um microscópio com melhor poder resolvente do que o dos microscópios ópticos existentes parecia uma tarefa impossível. Contudo, quando se descobriu que certas radiações invisíveis, como por exemplo os raios X, poderiam formar imagens visíveis por impressão de uma chapa fotográfica ou por projecção num painel fluorescente, a ideia de construir um microscópio utilizando uma radiação de baixo comprimento de onda começou a concretizar-se. Pode pois dizer-se, em termos simples, que a microscopia electrónica se baseia na utilização de uma radiação (fluxo de electrões) de baixo comprimento de onda.

  1. 3.    Os primeiros microscópios electrónicos

Apesar de se conhecerem as bases para se poder construir um microscópio electrónico, foi necessário resolver vários problemas. O primeiro desses problemas foi a produção da radiação com as características pretendidas. Conseguiu-se utilizando um filamento especial, de tungsténio, que emite electrões quando por ele se faz passar uma corrente eléctrica. No entanto, era necessário que esses electrões fossem orientados formando um fluxo ou feixe de radiação e que essa radiação tivesse um poder de penetração suficiente para atravessar um objecto e definir uma imagem desse objecto, tal como acontece nos microscópios ópticos. Isso conseguiu-se criando uma grande diferença de potencial (voltagem) entre o local onde os electrões são produzidos (filamento emissor de electrões) e o local onde são projectados (painel fluorescente). Como os electrões têm carga negativa, são atraídos para uma zona com carga positiva, com tanto mais intensidade quanto maior for a diferença de potencial existente.
Para a formação de imagens ampliadas de um objecto, há necessidade de obrigar o feixe de electrões a ter um comportamento semelhante ao da luz visível nos microscópios ópticos quando atravessa as lentes (convergentes). É claro que as vulgares lentes utilizadas nos microscópios ópticos não teriam qualquer acção sobre a radiação electrónica. No entanto, as investigações do físico alemão Bush (1926) sobre a trajectória dos electrões em campos magnéticos demonstraram que um fluxo de electrões é desviado ao passar por um campo magnético e, assim, criando campos magnéticos adequados, seria possível obrigar um feixe de electrões a comportar-se exactamente como um feixe de luz visível se comporta ao atravessar uma lente de vidro. Foram assim construídas as chamadas “lentes magnéticas” ou “electro-magnéticas” que não são mais do que bobines de fio de cobre enrolado, constituindo cilindros ocos, por onde se faz passar uma corrente eléctrica que pode ser regulada através de um reóstato. Como é sabido, ao fazer-se passar uma corrente eléctrica através de um fio de cobre enrolado (bobine), cria-se um campo magnético. O feixe de electrões ao passar pelo interior desses cilindros sofre um desvio, mais ou menos acentuado, conforme a corrente introduzida na “lente” é mais forte ou mais fraca.
Uma outra dificuldade a tornear era a existência de partículas no ar com as quais os electrões colidiam. Isto foi impedido criando um compartimento estanque (coluna do microscópio) onde é feito o percurso do feixe de electrões e de onde é retirado o ar existente através de bombas de vácuo adequadas.
Tendo consciência dos vários problemas e da forma de os resolver, o físico alemão Ruska e seus colaboradores, tentaram então construir um microscópio electrónico. Foi em 1931 que Ruska e Knoll construiram  o que pode ser descrito como o primeiro microscópio electrónico, no sentido moderno (Fig. 6).

Figura 6. O microscópio electrónico construído por Ruska e Knoll em 1931

Este protótipo foi gradualmente aperfeiçoado, com vista a ter um desempenho consideravelmente melhor do que um microscópio de luz convencional) e só depois de 1933 conseguiram construir microscópios electrónicos cujo poder resolvente ultrapassava largamente o dos microscópios ópticos. Ruska foi então contratado pela Siemens e participou do desenvolvimento do primeiro microscópio electrónico produzido comercialmente, que entrou no mercado em 1939 (Fig.7).

Figura 7.  O primeiro microscópio electrónico comercializado pela Siemens em 1939

Em 1986 foi atribuído a Ruska o Prémio Nobel da Física pela sua contribuição para o avanço da ciência. Transcreve-se parte do texto referente à atribuição do Prémio Nobel a Ruska:
“The German engineer Ernst August Friedrich Ruska (1906-1988) designed and built the first electron microscope, for which he was awarded the Nobel Prize in Physics in 1986. The electron microscope, like many other complex technological developments based upon current scientific research, cannot be associated exclusively with a single inventor. In the early 1930s several laboratories were at work on a super-microscope that would use electron waves, instead of light waves, to magnify a microscopic specimen. However, it is generally agreed that the German engineer Ernst Ruska designed and built the first working electron microscopes (1931-1933). Ruska's contribution to the science of physics, and to its applications in the fields of biology and medicine, was recognized in 1986 when he was awarded the Nobel Prize along with two other pioneers of modern microscopy, Gerd Binnig and Heinrich Rohrer.”

  1. 4.     Principais componentes de um microscópio electrónico

Um microscópio electrónico é essencialmente constituído por:

- Coluna onde se faz o percurso dos electrões.
- Filamento emissor de electrões na parte superior da coluna.
- Lentes (magnéticas) condensadoras com a função de fazerem convergir os electrões sobre o objecto.
- Porta objectos com mecanismo adequado para pequeníssimas deslocações do objecto.
- Lente objectiva destinada a ampliar a imagem e projectá-la sobre o painel fluorescente.
- Painel fluorescente onde se projecta a imagem ampliada do objecto.
- Câmara fotográfica com mecanismo de deslocação das películas e tempo de exposição regulável.
- Gerador de alta voltagem
- Bombas de vácuo
- Sistema de refrigeração.
- Lupa (óptica) para observar melhor as imagens projectadas no painel fluorescente
 Nos microscópios mais completos há ainda lentes adicionais (de difração, intermédias e projectoras), para obtenção de imagens mais ampliadas e mais pormenorizadas.
 Apresenta-se o esquema simples de um microscópio electrónico (Fig.8):

                                          Figura 8.   Esquema de um microscópio electrónico

 

 5.   Microscópios electrónicos de transmissão e de varrimento

Os microscópios electrónicos inicialmente construídos eram microscópios de transmissão. Na microscopia electrónica de transmissão, o feixe de electrões atravessa o objecto formando uma imagem bidimensional deste. Para isso ser possível, o objecto tem que ser de muito pequena espessura.
Mais recentemente foram concebidos microscópios electrónicos em que o objecto é “varrido”  por um  feixe de electrões que colidem com a superfície desse objecto, previamente metalizada, para que sejam libertados os chamados electrões secundários. Estes electrões, recolhidos por colectores especiais colocados em diferentes posições, permitem formar imagens que, por integração, constituem a imagem final, tridimensional, do objecto.
Embora tenham a vantagem de permitir obter imagens tridimensionais dos objectos, os microscópios electrónicos de varrimento têm um poder resolvente de cerca de 10 nanómetros, que é bastante mais fraco que o dos microscópios electrónicos de transmissão que têm um poder resolvente 100 a 200 vezes melhor.
Os microscópios de varrimento são muito úteis em várias áreas científicas como, por exemplo, na entomologia, permitindo analisar pormenorizadamente aspectos morfológicos com grande valor para a sistemática dos insectos.

 

6.    Algumas datas importantes na evolução da microscopia electrónica

   1873  Abbe e Helmholtz provam que o poder resolvente depende do comprimento de onda da
              fonte de energia
1897 Descoberta do electrão por J.J. Thompson
1924  De Broglie demonstra que os electrões têm propriedades ondulatórias
1927 Hans Busch demonstra que os feixes de electrões podem ser focalizados por
         campos magnéticos.
1931  Ernst Ruska e Max Knoll construiram o primeiro microscópio electrónico
          de transmissão.
1937  A empresa Metropolitan Vickers comercializa um protótipo do microscópio electrónico
1938  Von Ardenne constrói o primeiro microscópio electrónico de varrimento
1939  Primeiro microscópio electrónico de transmissão comercializado pela Siemens
~1940 Estudos teóricos sobre lentes magnéticas (W. Glaser, O. Scherzer)
1941 A empresa RCA comercializa um microscópio electrónico nos Estados Unidos da América
1954  É introduzido no mercado o microscópio electrónico Elmiskop 1
1964  Primeiro microscópio de varrimento comercializado pela Cambridge Instruments
1986  Prémio Nobel para  E. Ruska (juntamente com G. Binning e H. Rohrer)
~2000  Microscópio electrónico com correcção de aberração (H. Rose, M. Haider, K. Urban)
~2003  Conseguem-se resoluções abaixo de 1 angstrom (0,1 nanómetros)

  1. 7.  Conclusão

Desde a sua criação nos anos 30, o microscópio electrónico tem tido grandes aperfeiçoamentos. O poder de resolução foi progressivamente melhorado e chega actualmente a valores moleculares. O limite teórico do poder resolvente, para as voltagens normalmente utilizadas, é da ordem de 0,5 - 1 angstrom (1 angstrom é a décima parte do nanómetro). Na prática já foram  alcançadas resoluções desta ordem como acontece, por exemplo, como o microscópio Titan 80-300 (Fig.9). Este microscópio, produzido pela Empresa FEI, reune os aperfeiçoamentos mais recentes, como a correcção da aberração, e  tem uma resolução de 0,5 angstroms. É considerado o melhor microscópio electrónico disponível no mercado mas tem o inconveniente de ser comercializado a um preço muito elevado (15 milhões de dólares). Por isso, só muito poucas instituições tiveram possibilidade de o adquirir.

         Figura 9. O microscópio Titan  80-300.
                                                                
O microscópio electrónico, pelas suas características, nomeadamente pelo seu poder de resolução muito elevado, têm grande importância nos estudos científicos, muito particularmente nas áreas da medicina, da biologia, da química e da ciência de materiais. Como foi referido inicialmente, é o único instrumento que permite observar partículas virais, não só em suspensões purificadas como em inclusões nos tecidos. Por esta razão, é indispensável nos estudos das doenças causadas por vírus tanto em plantas como em animais.
Numa próxima contribuição referirei alguns aspectos da utilização do microscópio electrónico  nos estudos de fitovirologia.


José Constantino Sequeira