A MICROSCOPIA ELECTRÓNICA
- 1. Introdução
Quase
toda a minha vida profissional foi dedicada ao estudo das doenças causadas por
vírus em plantas, os chamados Fitovírus.
Os constituintes de um vírus (partículas virais ou viriões), dada a sua
pequeníssima dimensão, só podem ser observados utilizando um microscópio
electrónico. Este equipamento foi imprescindível para os trabalhos de
investigação que realizei e que se centraram não só na observação directa dos
vírus e análise dos seus aspectos morfológicos, mas também no estudo ultraestrutural das
anomalias por eles causadas nas células e tecidos das plantas infectadas. Dado
o interesse ou curiosidade que a microscopia electrónica poderá despertar nos
colegas menos familiarizados com esta técnica, achei que poderia transmitir
alguns dos conhecimentos que adquiri ao longo da minha experiência.
A
minha ligação à microscopia electrónica começou em 1967, na Estação Agronómica
Nacional (EAN), em Oeiras, quando iniciei o estágio de fim de curso cujo tema
foi o estudo das viroses do morangueiro. Como nessa altura a EAN não dispunha
ainda de microscópio electrónico, tive de socorrer-me do microscópio existente
no Instituto Gulbenkian de Ciência, graças à amabilidade do Prof. David
Ferreira, que nessa altura tinha em curso trabalhos de colaboração com a Dr.ª
Maria de Lourdes Borges, minha orientadora de estágio. O microscópio
electrónico era um Siemens Elmiskop 1 (Fig.1).
Figura
1- O “velho” microscópio Siemens Elmiskop 1
Após
concluir o curso de Agronomia, fui trabalhar para o Instituto de Investigação
Agronómica de Angola, no Huambo. Felizmente, havia em Luanda, na Faculdade de
Medicina, um microscópio electrónico que tive a possibilidade de utilizar sempre
que necessário. Esse microscópio era idêntico ao do Instituto Gulbenkian de
Ciência e o único inconveniente que tinha era a sua localização, a mais de 600
quilómetros do Huambo o me que obrigava a programar criteriosamente as
deslocações a Luanda.
A
partir de 1975, quando regressei à EAN, já esta dispunha de microscópio
electrónico, um Philips EM 300 (Fig.2), que me permitiu, durante quase 30 anos,
realizar a maior parte dos trabalhos de investigação em Virologia Vegetal. No
trabalho de doutoramento, efectuado na Escócia (Dundee) de 1979 a 1982,
utilizei também, curiosamente, um microscópio Philips (EM 301), praticamente
igual ao da EAN.
Figura
2. O microscópio electrónico Philips EM 300
Da
longa relação que tive com a microscopia electrónica posso dizer que foi para
mim aliciante ou até mesmo “viciante” descobrir, através dela, o mundo dos
vírus das plantas, muito especialmente os seus aspectos morfológicos que são
muito variados e a sua presença nas células e tecidos. Muitas das observações
que realizava na EAN prolongavam-se até tarde, frequentemente pela noite dentro
e quando observava algo de muito interessante, o entusiasmo era tal que, muitas
vezes, só depois das 22 horas desligava
o microscópio. E diga-se que era com grande pena que o fazia. Também em
inúmeras aulas que dei a turmas do ensino secundário e universitário verifiquei
o grande entusismo manifestado pelos alunos em relação ao microscópio
electrónico e às suas potencialidades. É sem dúvida uma ferramenta fundamental
para o estudo dos vírus que afectam não só as plantas mas também os animais.
- 2. A microscopia óptica e a microscopia electrónica.
Provavelmente
todos os colegas utilizaram a microscopia óptica mas muitos não tiveram
oportunidade de utilizar a microscopia electrónica nos seus estudos e, por
isso, desconhecerão os princípios em que
esta técnica se baseia. Não pretendo de forma alguma descrever detalhadamente todos
os aspectos técnicos que tornariam o texto exageradamente longo e árido, mas
apenas explicar resumidamente os princípios em que a microscopia electrónica se
baseia e fazer algumas comparações com a microscopia óptica.
Como
é do conhecimento geral, a principal característica de um microscópio é o seu poder resolvente que é medido como a menor
distância entre 2 pontos que são vistos ao microscópio como distintos. Assim,
se o poder resolvente de um microscópio for de 200 nanómetros, isto quer dizer
que dois pontos que distam entre si de 200 nanómetros ainda são vistos ao
microscópio como pontos distintos. Se estiverem a uma distância inferior, as
imagens observadas sobrepõem-se e não permitem concluir se os pontos estão ou
não separados.
Uma
grande ampliação das imagens obtidas num microscópio de nada serve se o poder
resolvente não for bom. Em vez de imagens com muito pormenor e com grande
informação, teremos “borrões” sem qualquer interesse.
O
microscópio óptico começou a ser utilizado no começo do século XVII. Muitos atribuem a invenção do microscópio a Galileu
mas foi Anton Van Leeuwenhoek (Fig.3), naturalista holandês(1632-1723)
quem o aperfeiçoou e utilizou na observação de seres vivos. Dotados de apenas
uma lente de vidro estes primitivos microscópios permitiam aumentos de até 300
vezes com razoável nitidez.
Figura
3. Anton Van Leeuwenhoek
Construído em
1674, o primeiro microscópio (Fig. 4 ), permitiu observar os glóbulos vermelhos
do sangue, vários microrganismos e bactérias de apenas 1 a 2 micra.
Figura 4. O Microscópio de
Leeuwenhoek
O microscópio simples de
Leeuwenhoek, foi aperfeiçoado por Robert Hooke (1635-1703), que lhe acrescentou
mais uma lente e, deste modo, conseguiu ampliações maiores (Fig.5). As
primeiras observações de um pedaço de cortiça feitas por este cientista inglês em
1655 e os estudos do holandês Leeuwenhoek levaram à descoberta das células.
Porém, somente em 1839, com o botânico Matthias Jacob Schleiden (1804-1841) e
com o zoólogo e fisiologista Theodor Schwann (1810-1882), ambos da Alemanha,
foi reconhecida a célula como a unidade fundamental da vida.
Figura 5.
O Microscópio de Hooke e imagens das células da cortiça
Quando
se estudou a forma de melhorar o poder resolvente do microscópio óptico
(fotónico), verificou-se que essa característica dependia essencialmente das
lentes (material constituinte e curvatura) e do comprimento de onda da luz
utilizada. Em relação às lentes chegou-se a um limite a partir do qual já não
era possível uma melhoria. O comprimento de onda da luz utilizada estava também
limitado entre os 400nm (ultravioleta) e os 700nm (infravermelho), uma vez que
essa luz é a luz visível. Como o poder resolvente de um microscópio é cerca de
metade do comprimento de onda da radiação utilizada, na melhor das hipóteses,
será de 200 nanómetros para a luz visível.
Para se utilizar uma “luz” de comprimento de onda mais favorável, ou
seja, muito mais baixo, teríamos que sair do espectro visível e, portanto,
qualquer imagem obtida seria invisível.
Assim,
a construção de um microscópio com melhor poder resolvente do que o dos
microscópios ópticos existentes parecia uma tarefa impossível. Contudo, quando
se descobriu que certas radiações invisíveis, como por exemplo os raios X,
poderiam formar imagens visíveis por impressão de uma chapa fotográfica ou por
projecção num painel fluorescente, a ideia de construir um microscópio
utilizando uma radiação de baixo comprimento de onda começou a concretizar-se. Pode
pois dizer-se, em termos simples, que a microscopia electrónica se baseia na
utilização de uma radiação (fluxo de electrões) de baixo comprimento de onda.
- 3. Os primeiros microscópios electrónicos
Apesar
de se conhecerem as bases para se poder construir um microscópio electrónico,
foi necessário resolver vários problemas. O primeiro desses problemas foi a
produção da radiação com as características pretendidas. Conseguiu-se utilizando
um filamento especial, de tungsténio, que emite electrões quando por ele se faz
passar uma corrente eléctrica. No entanto, era necessário que esses electrões
fossem orientados formando um fluxo ou feixe de radiação e que essa radiação
tivesse um poder de penetração suficiente para atravessar um objecto e definir
uma imagem desse objecto, tal como acontece nos microscópios ópticos. Isso
conseguiu-se criando uma grande diferença de potencial (voltagem) entre o local
onde os electrões são produzidos (filamento emissor de electrões) e o local
onde são projectados (painel fluorescente). Como os electrões têm carga
negativa, são atraídos para uma zona com carga positiva, com tanto mais
intensidade quanto maior for a diferença de potencial existente.
Para
a formação de imagens ampliadas de um objecto, há necessidade de obrigar o
feixe de electrões a ter um comportamento semelhante ao da luz visível nos
microscópios ópticos quando atravessa as lentes (convergentes). É claro que as
vulgares lentes utilizadas nos microscópios ópticos não teriam qualquer acção
sobre a radiação electrónica. No entanto, as investigações do físico alemão Bush (1926) sobre a
trajectória dos electrões em campos magnéticos demonstraram que um fluxo de electrões é desviado
ao passar por um campo magnético e, assim, criando campos magnéticos adequados,
seria possível obrigar um feixe de electrões a comportar-se exactamente como um
feixe de luz visível se comporta ao atravessar uma lente de vidro. Foram assim
construídas as chamadas “lentes magnéticas” ou “electro-magnéticas” que não são
mais do que bobines de fio de cobre enrolado, constituindo cilindros ocos, por
onde se faz passar uma corrente eléctrica que pode ser regulada através de um
reóstato. Como é sabido, ao fazer-se passar uma corrente eléctrica através de
um fio de cobre enrolado (bobine), cria-se um campo magnético. O feixe de
electrões ao passar pelo interior desses cilindros sofre um desvio, mais ou
menos acentuado, conforme a corrente introduzida na “lente” é mais forte ou
mais fraca.
Uma
outra dificuldade a tornear era a existência de partículas no ar com as quais
os electrões colidiam. Isto foi impedido criando um compartimento estanque
(coluna do microscópio) onde é feito o percurso do feixe de electrões e de onde
é retirado o ar existente através de bombas de vácuo adequadas.
Tendo consciência dos
vários problemas e da forma de os resolver, o físico alemão Ruska e seus colaboradores,
tentaram então construir um microscópio electrónico. Foi em 1931 que Ruska e Knoll construiram o que pode ser descrito como o primeiro microscópio
electrónico, no sentido moderno (Fig. 6).
Figura 6. O microscópio
electrónico construído por Ruska e Knoll em 1931
Este
protótipo foi gradualmente aperfeiçoado, com vista a ter um desempenho
consideravelmente melhor do que um microscópio de luz convencional) e só depois de 1933 conseguiram
construir microscópios electrónicos cujo poder resolvente ultrapassava
largamente o dos microscópios ópticos. Ruska foi
então contratado pela Siemens e participou do desenvolvimento do primeiro
microscópio electrónico produzido comercialmente, que entrou no mercado em 1939
(Fig.7).
Figura 7. O primeiro microscópio electrónico comercializado pela Siemens em 1939
Em 1986 foi atribuído a Ruska o Prémio
Nobel da Física pela sua contribuição para o avanço da ciência. Transcreve-se parte do texto
referente à atribuição do Prémio Nobel a Ruska:
“The German
engineer Ernst August Friedrich Ruska (1906-1988) designed and built the first
electron microscope, for which he was awarded the Nobel Prize in Physics in
1986. The electron microscope, like many other complex technological
developments based upon current scientific research, cannot be associated
exclusively with a single inventor. In the early 1930s several laboratories
were at work on a super-microscope that would use electron waves, instead of
light waves, to magnify a microscopic specimen. However, it is generally agreed
that the German engineer Ernst Ruska designed and built the first working
electron microscopes (1931-1933). Ruska's contribution to the science of
physics, and to its applications in the fields of biology and medicine, was recognized
in 1986 when he was awarded the Nobel Prize along with two other pioneers of
modern microscopy, Gerd Binnig and Heinrich Rohrer.”
- 4. Principais componentes de um microscópio electrónico
Um
microscópio electrónico é essencialmente constituído por:
- Coluna onde se faz o percurso dos electrões.
- Filamento emissor de electrões na parte superior da coluna.
- Lentes (magnéticas) condensadoras
com a função de fazerem convergir os electrões sobre o objecto.
- Porta objectos com mecanismo adequado para pequeníssimas
deslocações do objecto.
- Lente objectiva destinada a ampliar a imagem
e projectá-la sobre o painel fluorescente.
- Painel fluorescente onde se projecta a imagem ampliada do objecto.
- Câmara fotográfica com mecanismo de deslocação das películas e
tempo de exposição regulável.
- Gerador de alta voltagem
- Bombas de vácuo
-
Sistema de refrigeração.
-
Lupa (óptica) para
observar melhor as imagens projectadas no painel fluorescente
Nos microscópios mais completos há ainda
lentes adicionais (de difração, intermédias e projectoras), para obtenção de
imagens mais ampliadas e mais pormenorizadas.
Apresenta-se o esquema simples de um
microscópio electrónico (Fig.8):
Figura 8. Esquema de um
microscópio electrónico
5. Microscópios electrónicos de transmissão e de varrimento
Os microscópios
electrónicos inicialmente construídos eram microscópios de transmissão. Na
microscopia electrónica de transmissão, o feixe de electrões atravessa o
objecto formando uma imagem bidimensional deste. Para isso ser possível, o
objecto tem que ser de muito pequena espessura.
Mais recentemente foram
concebidos microscópios electrónicos em que o objecto é “varrido” por um
feixe de electrões que colidem com a superfície desse objecto,
previamente metalizada, para que sejam libertados os chamados electrões
secundários. Estes electrões, recolhidos por colectores especiais colocados em
diferentes posições, permitem formar imagens que, por integração, constituem a
imagem final, tridimensional, do objecto.
Embora tenham a vantagem
de permitir obter imagens tridimensionais dos objectos, os microscópios
electrónicos de varrimento têm um poder resolvente de cerca de 10 nanómetros, que
é bastante mais fraco que o dos microscópios electrónicos de transmissão que têm
um poder resolvente 100 a 200 vezes melhor.
Os microscópios de
varrimento são muito úteis em várias áreas científicas como, por exemplo, na entomologia,
permitindo analisar pormenorizadamente aspectos morfológicos com grande valor para
a sistemática dos insectos.
6.
Algumas datas importantes na evolução da
microscopia electrónica
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1873
Abbe e Helmholtz provam que o poder
resolvente depende do comprimento de onda da
fonte de energia
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- 7. Conclusão
Desde a
sua criação nos anos 30, o microscópio electrónico tem tido grandes
aperfeiçoamentos. O poder de resolução foi progressivamente melhorado e chega
actualmente a valores moleculares. O limite teórico do poder resolvente, para
as voltagens normalmente utilizadas, é da ordem de 0,5 - 1 angstrom (1 angstrom
é a décima parte do nanómetro). Na prática já foram alcançadas resoluções desta ordem como
acontece, por exemplo, como o microscópio
Titan 80-300 (Fig.9). Este microscópio, produzido pela Empresa FEI, reune os
aperfeiçoamentos mais recentes, como a correcção da aberração, e tem uma resolução de 0,5 angstroms. É
considerado o melhor microscópio electrónico disponível no mercado mas tem o
inconveniente de ser comercializado a um preço muito elevado (15 milhões de
dólares). Por isso, só muito poucas instituições tiveram possibilidade de o
adquirir.
Figura 9. O microscópio Titan 80-300.
O microscópio electrónico,
pelas suas características, nomeadamente pelo seu poder de resolução muito
elevado, têm grande importância nos estudos científicos, muito particularmente
nas áreas da medicina, da biologia, da química e da ciência de materiais. Como
foi referido inicialmente, é o único instrumento que permite observar
partículas virais, não só em suspensões purificadas como em inclusões nos
tecidos. Por esta razão, é indispensável nos estudos das doenças causadas por vírus
tanto em plantas como em animais.
Numa próxima contribuição
referirei alguns aspectos da utilização do microscópio electrónico nos estudos de fitovirologia.
José Constantino Sequeira
Muito bom seu texto. Sou recém-doutorado em microscopia eletrônica e confesso que você, através da sua história, contou boa parte da história da microscopia eletrônica. Obrigado!
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