O Bairro e o Palatino
Os alunos do ISA que viviam no “bairro” tinham as suas prerrogativas...
O “bairro” - uma área da cidade que ia do Calvário até às proximidades de Belém, num percurso bíblico inverso - era um ghetto dos alunos do ISA não lisboetas. Trás-montanos, além-tejanos, aquém-tejanos, além-barrocais (também conhecidos por algarvios) e ultra-marinos, aí se aglomeravam, melhor dizendo, se conglomeravam. Nas Ruas Luís de Camões, Jau, dos Lusíadas (três ruas dedicadas ao épico), da Indústria, do Cruzeiro e do Avelar Brotero, havia sempre uma senhora caridosa que dispensava um quarto da sua casa para o Sr. Engenheiro, ainda caloiro, a troco de 350 ou 400 escudos mensais (2 euros?, custa acreditar, ainda para mais com direito ao pequeno-almoço).
Como dizia, os estudantes do bairro tinham os seus privilégios: não tinham que esperar por autocarros para ir às aulas; em vez disso, faziam um saudável percurso de uns minutos a pé, subindo a Rampa da Asneira ou a Alameda das Olaias (Cercis siliquastrum, Lineu); estudava-se em parceria no silêncio do Jubel; de passagem namorava-se na quietude da Tapada da Ajuda; havia tertúlias espontâneas nos Jardins do Alto S. Amaro, discussões sobre Ionesco, “Dolce Vita”, Antonioni e o seu “Deserto Vermelho”, numa tentativa colectiva para adivinhar que partes do filme teriam sido surripiadas pela implacável censura, e sobre o sexo... dos anjos. Mas sobretudo tinham três centros de lazer, três: o Café Albuquerque, a Tasca do Zé Duarte, célebre pelas suas cadelinhas, e o Palatino.
O Albuquerque, aquele minúsculo café, onde mal cabiam duas mesas, estrategicamente situado na confluência das ruas da Indústria, Jau e Luís de Camões e em frente das paragens do 22, 27 e 38, era como a ante-câmara do ISA, por onde quase todos tinham de passar, mas sobretudo era o centro nevrálgico dos “bairristas”, onde eram partilhados livros, sebentas, apontamentos, notícias, boatos, piadas e lições de “desenrascanço”; um local de concentração mental, para o uso combinado de lógica, raciocínio e premunição no preenchimento dos boletins do totobola; a sala de espera da padaria dos Lusíadas, donde, às três de madrugada, sairia o apetecível pão com chouriço .
E havia o Palatino. Bastava um colega manifestar a sua intenção de ir ao Palatino, para ninguém o deixar ir sozinho; era um dever de solidariedade partilhar esse prazer. O cinema Palatino era um barracão, com plateia e balcão superior. Exibia sempre dois filmes de longa-metragem. Como era possível que dois filmes cuja duração total deveria ser de pelo menos quatro horas, eram exibidos em apenas três horas, das 21.00 às 24.00? Com recurso a cortes dramáticos no celulóide ... porque o operador do projector tinha de chegar ao Cais do Sodré a tempo de apanhar o último cacilheiro.
Naquele dia, um dos filmes era de “suspense”. Os estudantes do bairro em peso para vestirem a pele de detective. No meio do enredo, vê-se a actriz principal a tomar banho numa banheira, imaginamos sem fato de banho, a câmara a percorrer lentamente a borda da tina, mostrando apenas os ombros ensaboados da diva e o rosto, ainda com o penteado impecável, como quando saíra do cabeleireiro; lá fora o presumível assassino tentando abrir uma janela; a assistência com vontade de avisar a actriz do perigo que corria, quando na escuridão do balcão superior alguém grita: malta, aqui de cima vê-se tudo.
Só podia ter acontecido no Palatino e a piada só podia ter partido de um aluno do ISA.
José Venâncio Machado
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